Um Fato
Fui passar alguns dias no Rio Grande do Norte. Natal e Pipa, paisagens maravilhosas. Praias, umas mais bonitas do que as outras.
Lugares onde as pessoas se sentem felizes.
Pessoas felizes muitas vezes gostam de ouvir suas músicas preferidas.
Num volume altíssimo.
Praia bonita no Nordeste + pessoas felizes = som alto |
Um Problema
Sou chato com música.
Uma das coisas que aprendi nos últimos tempos é que um chato quase nunca se considera chato. Ele se autodenomina exigente.
Quando o assunto é música, sou chato mesmo.
Talvez tenha sido a oportunidade que tive, quando moleque, de observar de perto todo o talento de um dos melhores músicos de sua época (quem sabe, de todos os tempos), Luiz Chaves do Zimbo Trio;
Talvez o gosto musical elegante dos meus pais e irmão mais velho (Glenn Miller, Elvis, Beatles, Chico, Herb Alpert e por aí vai…);
Talvez as ótimas aulas de música na escola (pública) onde a querida e exigente D. Silvia nos fazia ouvir, à exaustão, músicas de (quase) todos os tipos. Sempre “com atenção, inteligência e sentimento”;
Talvez o respeito que lidar com cada um dos mais de 700 LPs adquiridos ao longo da vida sempre exigiu.
Virtuose + gosto musical de família + aulas de música + um monte de LPs = meu gosto musical |
Uma Tecnologia Incrível
Nota de esclarecimento:
Talvez alguns dos que nos leem aqui nunca tenham ouvido falar de LPs.
Os LPs, Long Plays, elepês ou simplesmente discos, eram chapas redondas, pretas, com 30 centímetros de diâmetro, fabricadas em vinil, com um pequeno orifício no centro, que tinham suas superfícies gravadas analogicamente em sulcos com música.
Esta música, como mágica, podia ser reproduzida por aparelhos chamados de toca discos, pick ups ou, popularmente, vitrolas.
A qualidade da música que podia ser obtida destes toca discos era diretamente proporcional ao dinheiro que conseguíamos gastar para comprá-los, mas todos possuíam:
– um prato que girava, em sentido horário, numa velocidade constante (geralmente 33 1/3 rpm);
– uma haste onde era encaixado o orifício do disco;
– um braço que continha na sua extremidade uma agulha (as melhores eram de diamante), que pousava delicadamente na superfície do disco.
À medida em que o prato girava, o atrito entre o sulco e a agulha reproduzia… música.
Cerca de 30 minutos de cada lado do disco.
Um Chato
Deixadas de lado as informações técnicas que só interessam aos nerds como eu, o fato é que eu sou chato com música.
Desde o meu primeiro LP, até por respeito ao bom equipamento de som que consegui em casa, fui sempre implacável com o tipo de música que podia ser tocada lá.
Música alta, tocando numa mesa próxima (às vezes não tão próxima) ou na casa do vizinho, me incomoda.
Música chiclete, me incomoda.
Letra estúpida, sexista ou preconceituosa, me incomoda.
Artistas, duplas, trios ou seja lá quantos forem, criados exclusivamente para explorar comercialmente o sofrimento das pessoas, me incomodam.
Música ruim (na minha opinião, claro), me incomoda.
Um incômodo que, como um espinho no pé, aumenta a cada passada.
Me vem sempre à mente um pensamento do genialíssimo Ariano Suassuna:
Eu sou um escritor brasileiro, meu material de trabalho é a língua portuguesa. Se você gasta o adjetivo “genial” com o Chimbinha, o que é que eu vou dizer do Beethoven?
Tá bom. Já sei que vou perder o carinho de muitos que agora leem este texto e tenho certeza de que a palavra cancelamento deve estar passando na cabeça de alguns.
É claro, também, que as afirmações acima têm um tom pretencioso. Um certo pedantismo.
Música boa = música que eu gosto Música ruim = qualquer coisa diferente disto |
Uma Constatação
Toda esta reflexão sobre gosto musical (regada por algumas ótimas caipirinhas), me trouxe a estarrecedora constatação de que admiradores do Chimbinha e de artistas que tinham suas músicas tocadas lá na praia, provavelmente odeiam as músicas que tanto gosto e que chamo de música boa.
Sob este prisma, uma pessoa que ouve as suas músicas preferidas sempre que pode, é muito parecido comigo. Só que com um gosto diferente do meu. Provavelmente o mesmo respeito que eu sempre tive com meu equipamento e meus LPs, ela tenha com sua enorme e barulhenta caixa de som.
Esta constatação foi quase um impulso para que eu desejasse me mudar imediatamente para uma ilha onde existisse uma única caixa de som: A minha. Ou que pelo menos eu tivesse, sempre à mão, um fone de ouvidos. Confesso que também me passou pela cabeça a ideia de entrar no mar e… ficar por lá.
O problema é que, olhando para isso, fico com a impressão de que todo o mundo agora está sempre se dividindo em 2. Aqueles que gostam daquilo que eu gosto e aqueles que não gostam daquilo que eu gosto. Você tem sempre que ser contra ou a favor de qualquer coisa.
Daí vem a velha matemática que ensina que + com + é igual a + e aí por diante…
Gosta do que eu gosto = amigo Não gosta do que eu gosto = inimigo Gosta do que eu não gosto = inimigo Não gosta do que eu não gosto = amigo |
Um Diabo nas Redes
As redes sociais nos empurram ainda mais para esta polarização.
Eu só recebo informação daquilo que, em algum momento, demonstrei gostar e isto aprofunda a minha certeza de que todo o resto é lixo. O filme O Dilema da Redes trata bem esta questão.
Muitos etimologistas e religiosos entendem que a palavra diabo vem do grego (diabolos) e tem significado de “aquele que divide”.
Este mundo de likes e dislikes divide.
Vão sendo erguidos muros.
Estes muros silenciosos, erguidos nos nossos julgamentos, e apoiados por este “diabo”, colocam do outro lado tudo que é diferente do que pensamos e acreditamos.
O julgamento divide.
E com certeza tem gente boa do outro lado. Gente igual à gente.
Na verdade, opiniões e paixões musicais, políticas, futebolísticas, sexuais e até religiosas diferentes das minhas são só… opiniões e paixões diferentes.
Diferente = diferente |
Um Jeito Diferente
O “diferente” tem que começar por mim.
Agir diferente. Pensar diferente. Aceitar diferente.
No meu caso, o problema é impaciência musical crônica. Talvez você também possa fazer um exercício, com alguma outra intolerância aí escondida.
E não pense que vou substituir Psyco Killer por Bonde do Tigrão. Nem colocar músicas de sofrência no lugar das de MPB nas minhas playlists. Mas vou tentar aceitar melhor todas as brincadeiras musicais feitas comigo, sempre que estou em algum lugar em que o controle musical não seja meu.
Difícil, algumas vezes quase impossível. Mas dá para aprender.
Dizem que pau que nasce torto morre torto
Eu não sou pau, posso me regenerar
Música Fraqueza de Antonio Carlos e Jocafi
Acho até que já comecei bem.
Aceitar o diferente = conviver melhor consigo mesmo |
As Notas
Sempre existem as notas…
Nota 1. Minhas restrições com relação às músicas com letra estúpida, sexista e preconceituosa vão continuar;
Nota 2. Ouvir música em um volume que incomode os outros não é “diferente”, é desrespeito mesmo;
Nota 3. O fato de eu aceitar o diferente não quer dizer que vou parar de reclamar quando for obrigado a ouvir músicas das quais não gosto;
Nota 4. Nenhum disco foi maltratado durante a produção para este post.
Nota 5. Tão gostoso quanto escrever este post, foi mexer com todas estas preciosidades e lembranças.
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