Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

gilberto gil

Algumas pessoas já sabem que minha esposa, Rita, corre.

Você pode achar que é mais uma destas corredoras de fim de semana.

Definitivamente não.

Corredora séria, dedicada aos treinos.

Longões na USP, provas de 10km (“se é para correr menos que isto nem vale pagar a inscrição “), 18km, meia maratona…

E a leveza.

Várias vezes ouvi que “dá raiva ver a Rita correr”.

Eu, particularmente, acho lindo. 

Enfim, a Rita nasceu para isto. 

Eu também já corri. Comecei em 2008.

Fiz um número inimaginável de provas. Ótimos tempos.

Aí veio primeiro uma hérnia inguinal, depois o rompimento do tendão do ombro (o famoso manguito rotator).

E por fim uma preguiça danada de dedicar horas a intermináveis treinos que eu poderia dedicar às minhas paixões: a gestão, as pessoas e a cozinha (sempre acompanhada de bons vinhos, é claro). 

Meus tênis de corrida continuam a sair do armário. Mas nada de competições.

Acompanho diariamente a Donna (nossa border collie com sua inesgotável energia) para trotes em torno do quarteirão.

Muitas mais voltas do que eu gostaria, diga-se de passagem. 

Neste cenário, a Rita veio com um convite que partiu da turma de corrida dela. 

“Vamos fazer o caminho da fé?”

“Sairemos de Paraisópolis – MG e vamos caminhando até a Basílica de Aparecida – SP.”

“114km em 3 dias.” 

Pausa dramática. 

114km?

Por tudo que temos vivido, acho que tanto eu quanto a maioria das pessoas estamos precisando de uma “freada de arrumação” nas nossas vidas. 

Topei. 

A história a seguir são os aprendizados de 3 dos dias mais incríveis que tive oportunidade de viver. 

Dia 0 – Quem é esta gente?

No micro-ônibus que ia nos levar até Paraisópolis, além dos parceiros de corrida de rua da Rita (que hoje viraram grandes amigos de vida), estavam algumas outras pessoas que eu não conhecia. 

Assim que partiu, a TV do micro-ônibus começou a exibir um vídeo sobre o UTMB.

Uma corrida de mais de 160km na França.

Quando comentei sobre a beleza do local e sobre a insanidade da corrida, algumas destas pessoas, que eu não conhecia anteriormente, começaram a comentar que já tinham participado desta e de outras corridas até maiores.

Pensei não ter ouvido direito quando a Katia, uma destas desconhecidas naquele momento (e que ao final do fim de semana me orgulho de chamar de amiga) disse que já tinha participado de uma corrida de 320km.

O QUÊ? 320KM?

Pessoas incríveis com quem tive a oportunidade de conviver pelos 3 dias seguintes.

Pessoas comuns que um dia resolveram fazer algo extraordinário, trabalharam duro e se tornaram pessoas extraordinárias no que fazem. 

O medo tomou conta da minha noite.

Será que vou conseguir fazer esta prova?

Será que vou passar vexame?

Será que uma simples pessoa humana como eu consegue sobreviver a uma prova(ção) destas? 

Eu estava morrendo de medo.

O MEDO

Incrível como o medo rouba energia da gente.

Seja na nossa vida, nos nossos relacionamentos, nos nossos negócios, nos nossos desafios diários.

Quando gastamos energia com medo daquilo que está por vir, sofremos antes da hora, muitas vezes desnecessariamente. 

Dia 1 – O grande desafio

O local onde pernoitamos era simples, mas trazia o charme dos casarões que sediavam as antigas fazendas de café.

Acordar cedo, banho rápido para despertar o corpo (a mente nem dormiu!), roupa e equipamento adequados (pelo menos era o que eu pensava naquele momento), café da manhã e vamos começar.

O medo, aos poucos, deu lugar a uma mistura de excitação com ansiedade, tudo rodeado por borboletas que insistiam em voar dentro do meu estômago.

O pessoal técnico da organização nos passou detalhes do que iríamos enfrentar neste dia e, alguns minutos antes de iniciarmos a caminhada, uma pessoa queridíssima do grupo pediu para falar uns instantes:

“Estamos aqui para fazer o Caminho da Fé. Não vamos reduzir estes 3 dias somente a um exercício físico. Vamos exercitar também a nossa fé.”

E ofereceu a todos, respeitando as crenças de cada um, uma Cruz tau (Cruz dos Franciscanos) para nos acompanhar na jornada. 

Aquilo mexeu comigo.

O terço me acompanhou durante toda a viagem como um sinal para me lembrar a todo instante que o propósito tem que ser mais forte do que o movimento.

Iniciamos a caminhada. Nem preciso dizer que aquelas pessoas extraordinárias de que falei no início já iniciaram correndo.

E logo veio uma subida, depois uma pequena descida, depois uma subida maior, depois uma outra de tirar o fôlego. E depois, outra…

Depois de umas 4 horas de caminhada e de uma sucessão interminável de subidas e descidas, exaustos, paramos para consertar os pés de quem não estava muito bem, tomar uma água, comer alguma coisa que chamamos singelamente de “almoço” e seguir caminhando.

Aí soubemos que o grande desafio da jornada estava para começar.

Fomos apresentados à subida da Luminosa, chamada com carinho de quebra perna, tem um ganho de altitude de mais de 900 metros em cerca de 10 km.

Ou seja, é mais ou menos como subir 3 andares a cada 100 metros. E depois repetir isto 100 vezes.

A cada passo, 100 motivos para desistir e somente 1 para continuar.

O presente que o Marcelo, este amigo mais que especial, nos ofereceu, deu à caminhada um significado muito mais profundo.

Passei todos os momentos em que consegui respirar (confesso que não foram muitos) pensando que o que nos mostra o caminho na vida é um propósito.

“Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável.”, (Sêneca).

Finalmente chegamos à pousada. Lugar OK, comida farta, quarto para 9 pessoas com 4 beliches com um único banheiro.

Alguns casais precisaram compartilhar uma cama de solteiro do beliche. 

Tudo para tirar o humor de qualquer um. Só que não.

Uma alegria juvenil no ar. O sentimento de ter feito algo realmente grandioso.

De ter superado os limites do corpo e da mente.

Uma noite reparadora de sono.

O PROPÓSITO

É o propósito que nos mostra o caminho e nos faz ir em frente.

Este propósito compartilhado com a equipe funciona com uma usina de energia impulsionando você e seu negócio para frente e dá disposição para superar qualquer obstáculo.

Dia 2 – We are the champions 

Café da manhã OK e vamos em frente.

Começamos a caminhada todos juntos.

Uma pequena descida.

Uma longa conversa comigo mesmo.

Como superar os obstáculos?

Como me tornar uma pessoa melhor?

Como servir às pessoas de maneira mais efetiva?

Quando fui olhar para trás, não havia ninguém.

Eu estava tão energizado e andei tão rápido que fiquei muito à frente dos demais.

Mas não importa.

A seta (o propósito) vai sempre indicar o caminho.

E fui seguindo rápido. Uma subida forte, uma curva, mais subida e mais curva e de repente já não via mais as setas.

Aqui é importante entender uma das características do caminho da fé: há sempre uma seta amarela indicando o caminho.

Vi uma pessoa por perto e perguntei:

– Aqui é o caminho da fé?

– Caminho da fé? Não é aqui não. Caminho da fé é lá por baixo. O senhor devia ter virado láááá atrás. 

Um frio na barriga.

Acelerei, voltei, fui achando rastros do meu pessoal.

– É o senhor que está com uma turma de umas 10 pessoas? 

– Sim, eu mesmo.

– Ichi, eles estão preocupaaados…

Acelerei mais ainda.

Lá pelas tantas o carro de apoio veio a minha procura e acabou me achando.

A turma continuava seguindo uns 15 minutos a minha frente.

O convite (tentador) para subir no carro não podia ser aceito.

Iria ferir de morte o que eu queria para o fim de semana (e o meu orgulho também).

Enfim, posso dizer que esta caminhada foi de 114 km para os outros; para mim foram 115,5 km mais uma dose grátis de adrenalina.

A caminhada tem um ingrediente a mais.

Ao iniciar, recebemos uma credencial.

Nesta credencial existe espaço para que locais ao longo do caminho possam registrar a nossa passagem.

Encontrar estes locais era sempre uma alegria.

Éramos sempre recebidos com um café, uma água, ou, no mínimo, com um “vai com Deus”. 

Mas, alegria mesmo era a chegada nas pousadas.

Os parabéns de quem chegou antes.

A espera e o acolhimento de quem vinha depois (confesso que eram poucos).

As histórias e os “causos”. O banho que limpava o corpo e o espírito.

A comidinha caseira que, depois de 8 a 10 horas caminhando, parecia um banquete.

Nesta pousada tivemos o prazer de contemplar lá longe, no horizonte, o vulto alaranjado da Basílica.

Independente da fé de cada um, impossível não se emocionar.

Hora de ir para a cama. Desta vez um quarto compartilhado para 4 pessoas divididas em 2 beliches. 

Momento de pensar nos aprendizados do diazzzz.

A ATENÇÃO

O propósito mostra sempre o caminho, mas a atenção (que eu chamo a virtude de estarmos onde estamos, fazendo o que estamos fazendo) é o que nos mantêm firmes nele.

Tenho certeza que nos nossos negócios funciona da mesma forma. As distrações estão ao longo do caminho.

Tudo que fizermos, toda atividade, todo e-mail ou reunião que não estiver claramente alinhado ao nosso propósito, é alguma coisa que não precisaria ser feita.

Dia 3 – O poder do time 

Sempre cito um provérbio africano:

“Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá em grupo.”

O que sobrou do corpo acordou no último dia com alegria.

Último dia. Dia de festejar, só faltam…

35KM.

Café e pé na estrada.

O terceiro dia seria simplesmente uma descida da altitude de 1700 m, onde estava a pousada que ficamos, até os 500 m de altitude do local onde fica o Santuário.

Parece simples.

A descida era muito pesada e meu pessoal já começou a descer trotando, para testar a integridade de qualquer joelho e acabar definitivamente com a ponta dos meus pés.

Uma coisa que não citei, desde o início deste breve relato, foi que existia uma mágica que fazia com que nossas coisas saíssem de uma pousada assim que começávamos nossa caminhada.

E já estivessem a nossa espera no fim do dia na próxima parada. 

Além desta mágica aconteceram várias outras.

De tempos em tempos estava a nos esperar o carro de apoio com uma mesa repleta de água e outras bebidas geladas, todo o tipo de lanche, e o melhor e mais importante de tudo: as palavras certas de incentivo.

– Vamos lá…

– Você está indo super bem…

– Agora tem só mais uma subidinha e depois fica moleza…

Era uma alegria inexplicável fazer uma curva e dar de cara com o Bruno tirando fotos da nossa chegada, oferecendo algo para comer ou beber, correndo conosco o início do trecho só para nos “empurrar”.

Como eu disse, mágica pura. Sem uma distância ou tempo determinado, sempre que a cabeça pedia ou que o corpo gritava, lá estava na próxima curva o carro de apoio.

Mas a mágica não era só esta.

Além da logística, hospedagem e apoio, e de ótimos profissionais (que indicavam o caminho, a estratégia e ainda cuidavam dos pés cheios de bolhas), na caminhada, fomos acompanhados por um time de craques que me fez pensar muito no sentido da palavra excelência.

Tenho certeza que não vou falar tudo que recebemos, mas alguns fatos foram marcantes:

O trecho mais pesado da jornada foi a subida da Luminosa.

Na metade da subida, trecho em que as pernas de alguns já não estavam mais respondendo, a Katia, aquela de quem falei no início que tinha participado de uma corrida de 320 KM, de repente apareceu.

Terminou o percurso dela, chegou ao destino do dia e voltou para “nos dar uma força”.

O comandante da caminhada, Fabio Tavares, uma fera do mercado financeiro e que acumula algumas provas fantásticas no currículo, não deixava ninguém para trás.

Nos momentos em que o desânimo batia ele vinha ao meu lado e dizia: “Eu também estou bem cansado.”

Mentiras sinceras me interessam.

Começávamos a conversar sobre caminhadas, negócios, sobre a vida e, de uma forma sutil, o cansaço era esquecido.

A fera da jornada, Caco, não caminhou, mas não descansou.

Ficou nos bastidores fazendo tudo dar certo.

Mas lembro dele, em uma das paradas de descanso, com carinho e talento, literalmente consertando o pé de uma das pessoas que estava sofrendo com as bolhas que aparecem e unhas que querem desaparecer. 

Além do todo este conforto recebido do time organizador, partir para um desafio com um grupo traz uma energia poderosa que vai mexendo com todo o corpo.

Conhecidos que se tornaram amigos, amigos que viraram irmãos.

Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na descida e na subida, na chegada e na largada.  

De repente, depois de mais uma curva qualquer, aparece o fim do caminho.

Está ali, quase ao alcance das mãos, a Basílica, que naquele momento pareceu maior e mais bonita do que eu lembrava.

Mas ao mesmo tempo a cabeça não se deixava enganar: mais uma hora de caminhada.

Assim, depois dos últimos quilômetros (que pareciam milhas) entramos no Santuário, independente da fé e das convicções de cada um, foi impossível segurar uma lágrima que insistia em aparecer nos olhos.

Talvez tenha sido um cisco.

Banho, almoço, caminhada na Basílica, ônibus de volta, mas tinha tanta coisa dentro do meu coração, que nem consigo lembrar exatamente como foi o fim do caminho e a volta pra casa.

A FÉ

Sempre achei difícil discutir sobre fé.

Sobre aquilo que acreditamos sem tocar.

Sobre as certezas que temos na vida.

Quem tem fé sabe porque tem.

Quem não tem dificilmente saberá porque não tem.

Mas tenho certeza de que se queremos alguma coisa na vida, temos que crer para ver.

Ou como dizia Gonzaguinha:

“Fé na vida, fé no homem, fé no que virá

Nós podemos tudo, nós podemos mais

Vamos lá fazer o que será.”

Dia 4 – De volta para casa 

O dia seguinte da caminhada serviu também como uma aula de anatomia. Consegui claramente saber quantos músculos tenho no corpo.

Todos eles doíam.

Mas como disse um “agora irmão” de caminhada: “A dor passa, o orgulho é para sempre.”

Na prática, os aprendizados também foram enormes.

A mochila tem que ser mais leve.

Acho que na vida funciona da mesma forma. Quanto mais coisas inúteis colocamos na nossa jornada, mais difícil fica a viagem.

O tênis… Ahh o tênis…

Desde o início de minha vida profissional fico intrigado com anúncios do tipo: procura-se recém-formado com experiência.

Alguma coisa não bate bem para mim.

Deveríamos levar calçados 2 números maiores do que os que costumamos usar, mas não deveriam ser novos.

Acabei caindo num deadlock. Não tenho tênis 2 números maiores do que calço.

Não dá tempo de amaciar um tênis novo.

Quem acabou me acompanhando foi o meu velho e bom tênis, companheiro de um monte de corridas. Mas ficou claro desde o início que na caminhada, na vida e nos negócios, se você não usar os equipamentos certos, vai pagar um preço alto por isto. 

Tantas reflexões em tão pouco tempo.

Depois destes 3 dias uma certeza tomou conta de mim: eu nunca mais serei o mesmo.

Junto com as dores, os aprendizados e as certezas veio a pergunta:

Andar com fé eu vou, quando será a próxima?