Uma dor de dente
Semanas atrás fui acordado por uma dor de dente horrível.
Espero que você nunca tenha passado por isso. Dor de dente é aquela coisa chata que incomoda no começo e, depois de algum tempo, torna você praticamente um serial killer.
Minha relação com a cadeira de dentista foi sempre abastecida por uma certa genética desfavorável, por anos de cuidado bucal inadequado, por uma pressão exagerada durante a escovação e por uma força desproporcional que incoscientemente aplico a cada mordida.
Tornando essa história longa, um pouco mais curta, vou direto para ao diálogo que caiu como uma prensa sobre o meu estado de espírito e também sobre o meu ego:
– Vamos ter que extrair.
– Vai nascer outro no lugar? Lembro que quando tinha uns 6 anos…
– Não.
A Finitude da Coisas
Confio plenamente na equipe de profissionais com quem me trato por anos. Chego a dormir na temida cadeira de dentista durante o tratamento, mas… extração???
As palavras perda, irreversível, fim (e agora extração) sempre me causaram um certo pânico.
Eu preciso estar muito convencido de algo para queimar meus navios.
Difícil saber o que é pior: a dor de dente que me afligia ou a dor da consciência de saber que uma parte de mim chegou ao fim.
Melhor casar do que separar, abrir um negócio do que fechá-lo, melhor admitir uma pessoa que demiti-la, começar uma amizade do que terminá-la, melhor nascer que morrer.
Melhor o desconforto que o nascimento de um dente traz para um nenê do que a tristeza de saber que ele não está mais lá. Irreversivelmente.
Aquele dente extraído (ou o espaço deixado por ele) abriu uma porta na consciência, sobre algo que todos nós deveríamos pensar.
Como lidar com as perdas?
O que realmente dói?
Luto
Como lidar com esta coisa aflitiva chamada luto?
O que acontece, dentro de mim, quando sinto o vazio onde antes estava meu dente? Como foi a separação de alguém realmente importante na minha vida? Como lidei (e lido) com algumas oportunidades que perdi? Como me reerguer após um baque profissional? Como foi a perda de um pessoa querida?
Sem bancar a Alice, aquela do País das Maravilhas, quis colocar todas essas situações que vivi, e algumas que ainda vivo, num cesto e fui procurando viver e me observar a cada mordida, em cada uma das fases do luto que passei e/ou ainda estou passando. Quero compartilhar aqui algumas reflexões:
1. Negação
No começo é a negação.
– Será que não tinha mesmo salvação para esse dente?
– Eles estão apenas chateados. Isso tudo logo vai voltar ao normal;
– Deve existir alguma maneira de de viabilizar este negócio;
– Com certeza eles não avaliaram bem a situação. Logo, logo vão ligar para dizer que precisam de mim;
– Fico com a impressão que vou dar de cara com ele ao virar a próxima esquina;
Sentimento de tristeza, um monte de elocubrações, uma certa vontade de ficar só e, principalmente, não falar com ninguém sobre o assunto.
2. Raiva
Depois vem a raiva.
– Isso não podia ter acontecido comigo;
– Eles vão se arrepender;
– A culpa foi daquele miserável que me deu um monte de conselhos absurdos;
– Meus chefes eram fracos. Espero que se deem mal;
– Se ele se cuidasse mais, talvez isso não tivesse acontecido;
E sempre: Onde está Deus nisso? Como Deus deixa isso acontecer?
Esta reação, algumas vezes desmedida, acaba sendo descontada em quem, inadvertidamente, vem oferecer conforto ou te trazer para a realidade. Aliás, desculpe Rita pelas últimas semanas…
3. Barganha ou Negociação
Neste momento você começa a criar uma realidade paralela, onde aquilo que causa dor não acontece.
– Se eu tivesse levado meus dentes mais a sério, não estaria passando por isso;
– Se eu tivesse visto isso antes, as coisas não chegariam a esse ponto;
– Se eu tivesse me ligado nos avisos que o mercado estava dando, eu não estaria passando por essa situação;
– Se eu tivesse mostrado mais o meu trabalho, eles teriam visto o meu valor;
– Se nós tivéssemos procurado um médico mais cedo, talvez pudéssemos ter um quadro muito diferente;
Todos esses “se eu tivesse…”, de uma forma ou de outra, ajudam a adiar a tristeza.
4. Depressão
A constatação da dura realidade.
– Nada preenche o vazio que aquele dente deixou;
– É muito chato viver sem eles;
– Nem sei por onde começar;
– Não sei como seguir em frente agora;
– O que sou eu sem ele?”
A anestesia passa, a dor não.
5. Aceitação
A compreensão e aprendizado para seguir a vida. Além disso, o difícil exercício de colocar a gratidão no lugar da saudade.
– Tenho saudade daquele dente a cada mordida – parece estranho, porém é a pura verdade;
– Em última análise, essa escolha foi saudável para todos;
– Vou usar os aprendizados para construir um negócio mais próspero;
– A partir daqui serei capaz de encontrar um novo caminho;
– Tenho muita sorte por ter passado esse tempo maravilhoso com ele. Ele vai estar sempre em minhas memórias e no meu coração;
Aceitar é entender que sempre teremos saudade, mas temos que seguir em frente.
Nesta trajetória entendi que, dentes extraídos, relacionamentos desfeitos, oportunidades perdidas, contratos de trabalho rompidos, pessoas queridas que se foram, têm muito mais a mostrar pelo tempo de convivência do que pela ausência.
Meu Pai
Particularmente, foram dias de muitas lembranças do Sr. Onofre. Ele foi (e continua sendo) um herói para mim.
Duro e puro como um diamante.
Tenho a graça de fazer aniversário no mesmo dia que ele, separados por 37 anos.
Ele se foi há mais de 10 anos. Ainda sinto a sua falta com a mesma frequência que passo minha língua naquele espaço onde antes estava meu dente. O tempo todo.
Mas os 51 anos de convivência foram de um aprendizado diário tão intenso que, tenho certeza, vão preencher todos os dias da minha vida.
E por falar em aprendizado…
Não sei dizer se esse caminho que trilhei é o único, nem se trilhá-lo é agradável.
Só sei que é inevitável.
Saí (se é que saí) desse processo com 31 dentes e algumas lições de casa:
- Pense em cuidar de tudo que é caro para você;
- Elogie mais, critique menos;
- Não deixe para amanhã para declarar seu amor;
- Entenda que tudo chega ao fim. Até lá, seja a sua melhor versão, com tudo e todos que estão à sua volta.
A arte é longa, a vida é breve.
Hipócrates
Nota: O “eles” algumas vezes usada no texto pode ser trocado por ele, ela ou elas;
O “ele” algumas vezes usado no texto diz respeito ao meu pai.
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